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Sermao de Bossuet

Fevereiro 26, 2009

Sermão sobre a Ambição

Jacques-Benigne Bossuet

“Jesus, sabendo que o povo viria arrebatá-lo, para o fazerem rei, tornou a retirar-se, ele só, para a montanha”. (Jo, 6, 15)

Reconheço Jesus Cristo nesta fuga generosa, que fê-lo buscar no deserto o asilo contra as honras que lhe preparavam. Quem acabava de se encher de opróbrios, devia evitar as grandezas humanas; a única exaltação que meu Salvador conhecia era aquela que o elevou na cruz; assim como se ofereceu a si ao decidirem o suplício, fugira, conforme seu espírito, ao lhe destinarem o trono.

A fuga súbita e inesperada de Jesus Cristo para a montanha deserta, onde queria se esconder tão complemente que, nota o evangelista, não havia ninguém em sua companhia, permite-nos vislumbrar a extraordinária pressão que sente; como fosse ele todo-poderoso, nada temendo por si mesmo, havemos de concluir, com certeza absoluta, Senhores, que é para nos admoestar.

Realmente, Cristãos, quando ele se agitou, diz Santo Agostinho, foi de indignação contra os pecados; quando se perturbou, afirma o mesmo Padre, foi de comoção pelos males; assim, quando temeu e fugiu, foi para admoestar dos perigos. Na sua presciência, ele vê em quantos perigos extremados nos arrisca o amor das grandezas: por isso, fugia diante deles para obrigar-nos a temê-los; demonstrando nesta fuga as terríveis tentações com que ameaçam as grandes fortunas, ensina-nos definitivamente que repreender a ambição é o dever essencial ao cristão. Não é empresa de pouca monta pregar tal verdade à corte, e devemos mais que nunca pedir a graça do Espírito Santo, pela intercessão da Santa Virgem: Ave.

O desejo de combater a ambição, que é a alma daqueles que a seguem, é como desertar a corte; e o empalidecer os presentes da fortuna, dos quais os príncipes são os dispensadores, é como rebaixar a majestade.

Mas os soberanos piedosos desejam apagar toda sua glória na presença daquela de Deus; e em vez de se ofenderem deste modo com a falsa diminuição de seu poder, tornam-se venerandíssimos, pois as gentes só os rebaixam, como bem sabem, se os comparam a Deus. Não tenhamos medo de publicar ferozmente na corte mais gloriosa do mundo que ela é incapaz de fazer qualquer coisa digna da estima dum cristão; desiludamos, se pudermos, os homens deste apego furioso ao que denominam fortuna; por isso, façamos duas coisas: façamos falar o Evangelho contra a fortuna, façamos falar a fortuna contra si mesma; o Evangelho nos desvelará suas ilusões, e ela por si revelará suas inconstâncias. Ou antes, vejamos um e outra na história do Filho de Deus. Enquanto acorriam para ele os povos, prometendo-lhe nada menos que um trono, ele desprezou de tal modo esta grandeza vã, que se desonrou a si e abateu seu triunfo com a companhia de tristes homens e miseráveis. Contudo, calcando aos pés a magnificência de seu esplendor, ele se quer exemplo da inconstância dos negócios humanos; no espaço de três dias, viu-se a fúria popular pregar na cruz aquele que o favor público julgara digno do trono. Daí, devemos aprender que a fortuna nada é; não somente quando tira, mas também quando dá, não somente quando muda, mas também quando fica, ela é sempre desprezível. Já começo, por favor, e vos peço, meus Senhores, de bem me escutar.

Primeiro Ponto

Neste primeiro ponto, quero demonstrar que a fortuna nos jugula, ao mesmo tempo em que nos é liberal. Poderia expor seus desenganos à plena luz, provando como de costume que ela nunca cumpre o prometido; mas demonstrar que não dá sequer o que finge dar é algo ainda mais forte. Seu regalo mais caro, mais precioso e mais raro é o poder. É o encanto dos ambiciosos, do qual são zelosos ao extremo, não importando quão diminuta seja a parte que lhes caiba.

Vejamos se ela verdadeiramente confere tal poder, ou se não passa dum nome altivo pelo qual embaça os olhos doentes. Para tanto, é preciso saber o poder que nos cabe, e de que poder temos necessidade, durante esta vida. Mas como se admira deveras a alma humana neste exame, tratemos de conduzi-lo pela via direita, através da doutrina de Santo Agostinho (Livro XIII, Sobre a Trindade).

Este grande homem expõe aqui uma verdade importante, de que a felicidade requer duas condições: poder o que se quer, e querer o que se deve. Assim deve ser, pois se não podeis o que quereis, vossa vontade não ficará satisfeita; também, se não quereis o que deveis, vossa vontade não será regrada; uma e outra impedem a bem-aventurança, pois a vontade descontente é pobre, e a vontade desregrada é doente, o que exclui necessariamente a felicidade, que é a ordem perfeita da natureza, e sobretudo a afluência universal do bem. Por isso, é igualmente necessário desejar o que se deve e poder executar o que se quer.

Acrescentemos, se quiserdes, o mais importante de tudo: a primeira vontade nos embaraça durante a execução, a segunda leva o mal consigo desde o princípio.

Quando não podeis o que quereis, é uma causa externa o que vos impediu; quando não quereis o que deveis, a decepção acontece infalivelmente por causa de vossa depravação: enquanto o primeiro não passa de infelicidade, o segundo é sempre falta; mas só porque é falta, invisível a seus olhos, que é incomparavelmente uma grande infelicidade? Assim, ninguém pode negar, sem passar por louco, que a vontade regrada é um bem mais necessário à felicidade do que um imenso poder.

É por isso, Cristãos, que me não espanto muito do desregramento das afeições e da corrupção dos julgamentos. Abandonamos a regra, diz Santo Agostinho, e suspiramos pelo poder.

Cegos, que empreendemos nós? A felicidade possui duas metades, mas cremos possuí-la inteira, não obstante façamos separação violenta das duas partes. Ainda rejeitamos a mais necessária, e a que escolhemos, porque separada daquela companhia, não nos torna felizes, mas aumenta o peso de nossa miséria. De que serve o poder para uma vontade desregrada que, desejando mal, torna-se ainda pior ao exercê-lo? Não dizíamos, no último domingo, que o grande crédito dos pecadores é uma praga que Deus envia a eles? Por quê? Porque, Cristãos, juntar o desejo ruim à sua execução é jogar veneno numa chaga já mortífera, é acrescentar ao que já era muito. Não é como incendiar o humor maligno cujo veneno corroía-nos as entranhas? Reconhece o Filho de Deus que Pilatos recebeu de cima um imenso poder sobre sua divina pessoa: se fosse regrada a vontade deste homem, poder-se-ia regozijar empregando tal poder para castigar a injustiça e a calúnia, ou pelo menos para livrar a inocência. Mas como a prudência covarde de conservar seu posto havia-o corrompido, tal poder serviu apenas para firmar seu pensamento no crime de deicídio. Por isso, é o cúmulo da cegueira desejar um poder que se voltará contra nós mesmos, que matará a alegria e será funesto à virtude, antes de a vontade estar bem ordenada.

Nosso imenso Deus, Senhores, nos dita outro proceder: quer ele conduzir-nos por vias retas, e não por precipícios. Eis porque ensina a seus servos a prática de querer o bem, e não desejar muito poder; a regrar os desejos, antes de buscar satisfazê-los; a buscar a felicidade por uma vontade bem ordenada, antes de consumi-la pelo poder absoluto.

Mas já é tempo, Cristãos, para que apliquemos mais particularmente essa doutrina de Santo Agostinho. Que pedis vós, ó mortais? Que Deus vos dê muito poder? Respondo eu com o Salvador: Não sabeis o que pedis. Vede bem onde estais; vede a mortalidade que vos consuma, contemplai a figura do mundo que passa.

Em meio a tanta fragilidade, sobre o que sustentais esta grande idéia de poder? Certamente, um título tão imponente deve se apoiar sobre algo: que encontrais sobre a terra que tenha força e dignidade o bastante para sustentar o título de “poder”? Abri os olhos, e penetrai a carapaça: sequer o maior poder do mundo consegue mais do que tirar a vida de um homem; é necessário então um tão grande esforço para matar um mortal, para lhe antecipar nalguns momentos o curso da vida que, por si só, se precipita? Não acrediteis, Cristãos, que alguém encontre o poder onde reine a mortalidade. Assim ordenou, acrescenta Santo Agostinho, a sábia providência: cabe aos homens mortais a observância da justiça; dar-se-lhes-á o poder na morada da imortalidade.

Que exigis de nós ainda? Se desejarmos o necessário na vida presente, poderemos tudo o que quisermos na vida futura.

Regremos a vontade pelo amor da justiça: no tempo propício, Deus nos coroará com a comunhão de seu poder. Se dedicarmos o momento da vida presente à correção dos costumes, dará ele a eternidade inteira para contentar os desejos.

Creio que agora vedes, Senhores, que sorte de poder devemos almejar durante esta vida: poder para regrar os costumes, para moderar as paixões, para nos corrigir segundo Deus; poder de nós contra nós mesmos. Ó poder pouco invejado! E todavia o verdadeiro. As gentes combatem nosso poder de duas formas: ou impedindo-nos de levar adiante as empresas, ou turbando-nos o direito que temos de levá-las adiante; esta última é a verdadeira servidão, pois se ataca a autoridade do comando. Vejamos os exemplos de um e outro dentro da mesma casa.

José era escravo em casa de Putifar, e a esposa deste senhor do Egito era a senhora desta casa. Aquele, durante o jugo da servidão, não era mestre de suas ações; e esta, tiranizada pelas paixões, não era mestre de suas vontades. Vede até onde a levou o amor infame. Ah!, sem dúvida, a menos que tivesse uma cara de madeira, teria ela vergonha de tal baixeza, mas a paixão furiosa lhe arrastava para baixo, como a um escravo.

Chama o jovem, confessa tua fraqueza, rebaixa-te diante dele, torna-te ridícula. Poderia seu mais cruel inimigo aconselhar algo pior?

Controla-a a paixão. Quem não vê, nesta mulher, que sua própria escravidão atou-lhe laços fortíssimos?

Cem tiranos de tal sorte cativam a vontade, e sequer suspiramos! Regozijamos quando nos ligam as mãos, e sem pena arrastamos esses ferros invisíveis em que estão acorrentados os corações!

Protestamos contra a violência, quando se encadeiam os ministros, os membros que executam; não suspiramos quando se cativa a rainha, a razão e a vontade que comandam!

Desperta, escravo miserável, e reconhece esta verdade: se há grande poder no executar os desejos, há um maior e mais verdadeiro no reinar sobre as vontades.

Quem soubera gozar da doçura deste império, pouco se dará, Cristãos, do crédito e do poder que a fortuna possibilita. E eis aqui o motivo: não existe obstáculo maior ao comando de si que o possuir autoridade sobre os outros.

Com efeito, em nós há certa malignidade que espalhou nos corações o princípio de todos os vícios. Estão escondidos e guardados em centenas de recantos tortuosos, esperando a ocasião de levantar a cabeça. Tirar-lhes o poder é a melhor maneira de reprimi-los. Compreendera bem Santo Agostinho que, para curar a vontade, é preciso reprimir seu poder: Mas, os vícios escondidos seriam por isso menos viciosos? É a consecução que fá-los corruptos? Por acaso, deixar o veneno guardado no fundo do coração é curar a vontade? Eis o segredo: entregamo-nos a vontades impossíveis, a planos sempre frustros, tendo do crime somente a malícia. A malícia frustrada, por isso, começa a causar anojo; sua impotência leva-nos a querer e repulsar os seus favores; deste modo, toma-se mais facilmente o partido da moderação dos desejos. Primeiramente, fazemo-lo por necessidade; mas enfim, como o constrangimento é importuno, combatemo-lo seriamente e de boa-fé, bendizendo seu poderio ínfimo – eis a primeira providência em direção à cura.

Pelo contrário, quem não sabe que quanto mais independente se torna uma pessoa, mais os vícios são indomáveis? Somos crianças que precisam dum tutor severo, ou a dificuldade ou o temor. Se não erigimos barreiras, as inclinações corruptas começam a se manifestar e aumentar, oprimindo a liberdade sob o jugo da licenciosidade desenfreada. Ah!, vemos demais disso todos os dias.

Assim vede, Senhores, quanto a fortuna é enganosa, porque, em vez de conferir o poder, tira-nos até a Liberdade.

Não é por acaso, Senhores, que o Filho de Deus ensina-nos a temer os grandes efeitos; o poder é princípio ordinário de extravio: exercendo-o nos outros, freqüentemente perdemos a nós mesmos; enfim, o poder é semelhante ao vinho perfumado, que embriaga até os mais sóbrios. O que souber refrear a ambição será mestre de suas vontades, e acreditar-se-á suficientemente poderoso, à condição que possa regrar os desejos, e se desengane dos negócios humanos, para não mensurar a felicidade pela elevação de sua fortuna.

Escutemos, Cristãos, o que nos opõem os ambiciosos. É forçoso, dizem eles, distinguir-se: permanecer no usual é sinal de fraqueza, os gênios extraordinários sempre se desgarram da tropa, e conduzem o destino. Os exemplos dos que avançam parecem reprovar aos demais o pouco mérito, e é o desejo de distinguir-se que leva a ambição aos maiores excessos. Poderia eu combater, com muitos argumentos, a idéia de distinção. Poder-vos-ia representar este século como confuso, e afirmar que tudo está trocado, e que há de vir o dia derradeiro, no final dos séculos, para apartar os bons dos maus; e que a ambição cristã se deve inspirar neste discernimento claro e eterno. Poderia acrescentar ainda que é vão o esforço de se distinguir nesta terra, onde a morte logo vêm-nos arrancar dos lugares eminentes, abismando-nos a todos naquele lugar comum à natureza, o nada; desta forma, os mais fracos, rindo de vossa pompa fugaz e de vosso discernimento imaginário, dirão junto com o Profeta: ó homem poderoso e soberbo, que pensais que, por causa da grandeza, estais isento do jogo, eis aí vós ferido como nós, vós que sois semelhante a nós.

Mas sem me prender a tais argumentos, limitar-me-ei a perguntar a essas almas ambiciosas por que caminhos pretendem se distinguir. O do vício é vergonhoso; o da virtude, longo. De ordinário, a virtude não é muito ardilosa para conquistar o favor dos homens; e o vício, sempre preparado para a obra, é mais ativo, mais instante, mais pronto que a virtude, que não se desvia das regras, que só caminha a passos contados, que só progride com medida. Desta feita, estareis entediados de tamanha lentidão; a pouco e pouco, vossa virtude fraquejará, e após ela abandonará aquela regularidade primitiva, acomodando-se aos humores do mundo. Ah!, como seria sábio se renunciásseis duma vez por todas a ambição! Talvez ainda ela vos causasse alguma pequena aflição, mas sempre a compraríeis pelo preço justo, sendo-vos mais fácil suportá-la agora, que quando vos abandonáveis às delícias das honrarias e dignidades. Vivei contentes do que sois, e sobretudo que o desejo de obrar o bem não vos faça almejar uma condição mais subida.

Eis o incentivo ordinário dos ambiciosos: imploram sempre por platéia, erigem-se como reformadores contra os abusos, tornam-se severos censores de todos quantos vêem ocupar lugares eminentes. Para eles, sempre são belos os planos que meditam! Quantos conselhos sábios para o Estado! Quantos sentimentos nobres para a Igreja! Quantos regulamentos santos para a diocese! Em meio a tais desejos caritativos e pensamentos cristãos, dedicam-se ao amor do mundo, absorvendo insensivelmente o espírito do século; e finalmente, ao atingirem a meta, vão esperar pelas oportunidades, que marcham a passos de chumbo, e que enfim nunca chegam. Assim fenecem todos os bons desejos, evaporam como um sonho os excelsos pensamentos.

Em conseqüência, Cristãos, sem suspirar nem arder por um poder mais elevado, diligenciemos a dar boa conta do poder que Deus nos confia. Um rio, para fazer o bem, não precisa transbordar de suas margens, nem inundar os campos; correndo pacificamente no leito, não deixa de regar a terra e de presentear suas águas aos povos, para maior comodidade pública. Assim, evitando que os pensamentos ambiciosos nos comprometam em trabalhos penosos, tratemos de conduzir nossas águas para bem longe, levados pelo sentimento de bondade; e ainda que em misteres humildes, tenhamos caridade infinita. Tal deve ser a ambição do Cristão que, desprezando a fortuna, ri-se das vãs promessas, e não experimenta revezes, dos quais só me resta dizer algumas palavras, nesta última parte.

Segundo Ponto

A fortuna, grande mentirosa, num ponto pelo menos é sincera, pois não esconde suas artimanhas; ao contrário, exibe-as à luz do dia e, para além das leviandades ordinárias, de tempos em tempos se regozija de espantar o mundo com golpes terríveis e inesperados, como que para relembrar sua força na memória dos homens, com medo de que se esquecessem de suas inconstâncias, maldades e extravagâncias. O que me faz pensar que todas as benesses da fortuna não são favores, mas traições; que ela só nos oferece para nos manejar, e que os bens que dela recebemos não são regalos, mas armadilhas com que nos presenteamos para eternamente ficar entre suas mãos, sujeitos às viravoltas daninhas de seu poder duro e malicioso.

Esta verdade, estabelecida sobre muitas experiências convincentes, deveria desenganar os ambiciosos em face dos bens da terra, mas, ao contrário, é justamente o que os obceca. Em vez de irem ao encontro de um bem sólido e eterno, sobre o qual não domina o acaso, e de desprezar por isso a fortuna sempre cambiante, a inconstância os persuade, fazendo-os dedicarem-se de todo a ela, para no mesmo passo perdê-la. Escutai o que se diz dum hábil e manhoso político. A fortuna eleva-o bem alto, e nesta elevação menospreza as almas mesquinhas que o cercam, e que se repastam nos seus títulos e exibições de grandeza. Acredita ele que apóia sua família sobre fundamentos certos, encargos consideráveis e riquezas imensas, que sustentarão eternamente a fortuna de sua casa. Ele pensa que está assegurado contra toda sorte de investida. Ó cego e imprevidente! Comporta-se como se estes magníficos apoios, com que busca proteger o poder da fortuna, não tirassem a força dele mesmo!

Já se falou demais da fortuna, nesta cátedra da verdade. Escuta, homem sábio, homem previdente, que estende para tantos séculos vindouros as precauções da prudência: é o próprio Deus que te vai falar e confundir teus pensamentos vãos, pela boca do profeta Ezequiel: “Eis (a Assíria), é um cedro do Líbano, de magníficas ramagens, com espessa ramagem e elevada estatura, cujo cimo se alteia em meio às nuvens. As águas fizeram-no crescer; o abismo fê-lo altear-se, dirigindo suas águas para onde ele estava plantado, e enviando seus regatos a todas as árvores da região. Dessa forma dominava ele todas as árvores dos campos; seus galhos se alongavam, sua ramagem se desenvolvia, graças à abundância das águas que o tinham feito crescer. Em seus galhos se aninhavam todas as aves do céu. Sob seus ramos davam cria todos os animais dos campos à sua sombra descansava toda espécie de gente! Era belo por sua grandeza, pela extensão de seus galhos, porque suas raízes mergulhavam nas águas abundantes.”

Eis aí uma grande fortuna, um século não vê muitas parecidas com essa; mas vede sua fisionomia e decadência: porque ele foi tão orgulhoso de seu porte, e ergueu o seu cimo até as nuvens, e o seu coração se ensoberbeceu devido à sua altitude, entreguei-o nas mãos de um poderoso das nações, que o tratará como merece a sua malignidade, e o destruirá”; “Os que repousavam a sua sombra, retirar-se-ão”, de medo de serem esmagados sob as ruínas. Ele sofrerá uma queda terrível, e o contemplarão estendido por sobre a montanha, fardo inútil da terra: Se durante a vida era ele mesmo seu próprio sustento, morrerá em meio a desejos insaciados, legando aos filhos menores negócios escusos, que arruinarão a família; ou Deus ferirá seu filho único, e o produto de seu trabalho passará para mãos estranhas; ou Deus dar-lhe-á como sucessor um dissipador que, vendo-se num átimo possuidor de muitos bens, cujo acúmulo não lhe custou nenhum gemido, gozará com os suores vãos dum homem insensato, que enriquecerá outro; quando advir a terceira geração, a má administração e as dívidas haverão de consumir toda a herança. “Em todos os vales, romper-se-ão os ramos desta árvore imponente”: quero dizer, as terras e os senhorios provinciais que acumulara, com tanto denodo e trabalho, serão partilhados por várias mãos; e os que testemunharem essa viravolta dirão, dando de ombros e vendo com admiração os restos da fortuna corroída: Era para isso a grandeza que o mundo apreciava?

É esta a árvore imponente cuja sombra cobria a face da terra? Só resta agora um tronco inútil. É este o rio impetuoso que haveria de inundar a face da terra? Só vejo um pouco de escuma.

Ó homem, que pensas tu fazer, e por que trabalhas em vão? – Mas eu saberei como seguir e aproveitar o exemplo dos outros: estudarei os percalços da política e de sua condução, e aí então levarei o remédio. – Precaução insensata! Também estes não se valeram dos exemplos dos que os precederam? Ó homem, não te enganes: o futuro encerra acontecimentos inauditos, e a fortuna humana sofre perdas e fugas por tantos orifícios, que queda impossível detê-las. Represas a água por um lado, mas ela penetra pelo outro, fervendo por debaixo da terra. – Contudo, gozarei do fruto do meu trabalho. – Há! Por uns dez anos, no máximo! – Mas tenho em mente minha posteridade e meu renome. – Talvez tua posteridade não a goze. – Talvez sim. – E tantos suores, e trabalhos, e crimes, e injustiças, sem jamais arrancar à fortuna, a quem te devotas, senão um mísero talvez! Tenha em mente que nada há de seguro para ti, nem mesmo um túmulo para nele gravar teus títulos de soberbo, as únicas testemunhas da grandeza abatida: a avareza ou a negligência dos herdeiros talvez os recusem à tua memória, pois que mal pensarão em ti anos depois de tua morte! Certas são as penas da rapina, a vingança eterna das concussões e da ambição infinita. Ó dignos restolhos da grandeza! Ó belos escolhos da fortuna; ó loucura, ó ilusão, eis a estranha cegueira dos filhos dos homens! Cristãos, meditai nessas coisas; Cristãos, seja quem for, se acreditais vos apoiar nesta terra, valei-vos deste pensamento para encontrar a solidez e a consistência. Sim, o homem deve ter um apoio, mas não se podem amesquinhar os desejos a horizontes tão estreitos como os desta vida; antes, deve inculcar-se a eternidade. Com efeito, o homem cuida, dentro do possível, para que o fruto de seu trabalho não tenha fim; ele não pode viver para sempre, mas deseja que sua obra subsista para sempre: esta obra é a fortuna, de que cuida, dentro do possível, para que os séculos vindouros a vejam como ele a engendrou. Na alma humana, existe um desejo ávido por eternidade; caso o homem saiba aplicá-lo, está salvo. Mas ele erra na hora de aplicá-lo e naquilo que ama: se ama os bens perecíveis, nisto medita a eternidade; assim, esforça-se em buscar apoios de todos os lados para este edifício caduco, apoios também eles tão caducos, que o edifício parece vacilar. Ó homem, desengana-te: se amas a eternidade, busca-a em si mesma, não acredites que possas aplicar a sua consistência inquebrantável nesta água passageira, nesta areia movediça [que é a vida presente]. Ó eternidade, estás só em Deus; melhor, ó eternidade, és o próprio Deus! É aí que vou buscar meu apoio, meu estabelecimento, minha fortuna, meu repouso certo, nesta e noutra vida. Ámen.

Tradução: Permanência

Sermao do Cardial Newman

Fevereiro 26, 2009

SERMÃO SOBRE O AMOR

Cardeal Newman

I — O Amor Pureza: João Batista e João Evangelista

Por dois modos distintos a Graça de Deus nos é manifestada, segundo vemos nos exemplos tirados das Escrituras ou da história da Igreja, ou ainda da vida dos Santos e de outros fiéis servos de Deus. Encontramo-los entre os Apóstolos do Senhor, representados pelas duas figuras mais significativas daquela pequena comunidade privilegiada: S. Pedro e S. João. S. João é o Santo da Pureza e S. Pedro é o Santo do Amor. Não que amor e pureza se possam separar; não, pois, como se um Santo não tivesse em si e desde logo todas as virtudes; não como se S. Pedro não fosse tão puro pelo muito que amava ou S. João amasse menos pela sua pureza. As Graças do Espírito não podem separar-se uma das outras; uma implica todas as outras o que é o amor senão um comprazimento, uma entrega total do homem a Deus? O que é a impureza, por outro lado, senão o tomar de alguma coisa deste mundo, algo de pecaminoso, para objeto das nossas paixões, em lugar de Deus? O que é, senão um deliberado voltar costas da criatura em face do seu Criador, e uma procura insaciável de prazer não na transbordada presença de alegria, de luz e de santidade, senão à sombra da morte? Portanto, o homem impuro não pode amar Deus; e aqueles que secos se tornaram de amor não podem realmente ser puros; em qualquer objeto havemos de fixar os nossos afetos, e nisso havemos de achar contentamento; ora, não podemos pôr a nossa alegria em dois objetos, tal como não podemos servir a dois Senhores, que um ao outro sejam contrários. Muito menos ainda, pode o Santo ser imperfeito na pureza ou no amor, porque não será este, fogo claro e límpido, se a substância que o alimente não for inalterável e puríssima.

Porém, certo que assim é, o é igualmente que as obras espirituais de Deus se mostram aos nossos olhos de modo diverso, e que os Santos revelam no seu caráter e nas suas vidas, uns, esta virtude mais do que as outras, outros, aquela mais do que quaisquer. Por outras palavras, é do agrado daquele que tem o poder de dispensar todas as graças, conferir-lhes certos dons especiais para Sua glória, que iluminam e embelezam uma porção ou parte da sua alma, de maneira a colocar na sobra as suas outras abundantes virtudes. E então essa graça torna-se como que o sinal e assume especial relevo aos nossos olhos, de maneira que o que eles possuem para além dela, nós o consideramos nela incluído ou dela dependente; é como se mais não tivessem, embora tudo possuam; e assim lhes buscamos títulos distintivos ou os pintamos com a cor e a tonalidade dessa graça particular que lhes é com tal relevo própria. E neste sentido podemos falar, como tenciono faze-lo a seguir, de duas categorias principais de Santos, cujos símbolos são o lírio e a rosa: alvo e casto um da pureza dos anjos, abrasado o outro pelo amor de Deus.

Os dois personagens do mesmo nome, João, surgem os grandes exemplos da vida angélica. Quem poderemos, meus irmãos, imaginar possuídos de tal grandeza e de tão severa santidade como S. João Batista? Foi-lhe dado um privilégio que quase iguala a prerrogativa da Bem-Aventurada Mãe de Deus; porque se ela foi concebida sem pecado, ele sem mancha nasceu. Ela era toda pureza e toda santidade, e nada havia o pecado com ela; S. João, porém, nos primeiros dias da sua existência foi ainda cúmplice da maldição do nosso primeiro pai; sob a ira de Deus, privado da graça que Adão recebera, e que é a perfeição da natureza humana. No entanto, assim que Cristo seu Senhor e Salvador se fez carne, e Maria saudou Isabel, a mãe de João, logo a Graça de Deus baixou sobre ele e o pecado original se apagou em sua alma. É por isso que celebramos a natividade de S. João; ora, a Igreja não celebra o que não é santo; não celebra, por exemplo, a natividade de S. Pedro ou de S. Paulo, ou de Sto. Agostinho, ou S. Gregório, ou S. Bernardo ou S. Luís, nem a de qualquer Santo, por mais glorioso, porque todos nasceram em pecado. Celebra, sim, a sua conversão, os seus privilégios, o seu martírio, a sua morte, a sua trasladação, mas nunca o seu nascimento, porque em nenhum caso foi santo. A Igreja comemora, pois, três natividades apenas, a do Senhor, a de Sua Mãe e por fim a de S. João Batista, distinguindo-o acima de todos os profetas e pregadores que jamais, por muitos santos, viveram, salvo, talvez, o profeta Jeremias! E tal como o seu começo, assim o curso da sua vida. Foi transportado pelo Espírito do deserto, e ali viveu, nutrindo-se dos alimentos mais pobres, vestindo as roupas mais grosseiras, açoitando-se numa caverna de animais selvagens, longe dos homens, durante trinta anos, uma vida de morte e de meditação, até que foi chamado a pregar o arrependimento, a anunciar a vinda de Cristo e a ser o ministro do Seu batismo. Uma vez cumprida a sua missão, e não havendo deixado qualquer resto de pecado, foi posto de lado como um instrumento que já não serve, e na masmorra o seu corpo definhou até que, súbito, a espada do carrasco o trespassou para a vida eterna. Santidade, eis que a qualidade, a idéia com que a sua vida nos surpreende no seu começo no seu fim; o mais maravilhoso dos Santos, um eremita desde a infância, pregador depois a um povo decaído, e mártir finalmente. De certo tal vida encheu bem a expectativa que a voz de Maria anunciara a seu respeito antes ainda que nascesse.

Porém, ainda mais bela, e quase tamanha, é a imagem do seu homônimo o grande Apóstolo, evangelista e profeta da Igreja, que muito cedo veio juntar-se aos amigos escolhidos do Senhor e que por muito tempo lhes sobreviveu. Podemos contempla-lo na sua juventude e na sua velhice; e toda a sua vida, de extremo, é percorrida por este dom inefável da pureza. É o Apóstolo virgem, por isso tão amado do seu Senhor, “o discípulo que Jesus amou” e que reclinava a cabeça em Seu Peito, e que recebeu em sua casa a Mãe de Jesus, segundo desejo manifesto por seu filho na cruz, que teve a visão de todos os pródigios que haviam de vir ao mundo no fim dos tempos.

“Digno de muito louvor”, diz a Igreja, “é o Bem-Aventurado João, que, durante a Ceia, se reclinou no seio do Senhor, a quem Cristo na cruz entregou uma virgem, Sua Mãe sempre virgem. Foi escolhido casto e sem mancha pelo Senhor, e mais amado do que os outros. A semente particular da castidade fecundou-o para um amor mais profundo, porque, havendo sido escolhido virgem pelo Senhor, como tal permaneceu toda a sua vida”.

Ele fora quem, na sua juventude, se mostrara tão pronto a beber com Cristo o Seu cálice, que viveu durante muito tempo como um estranho desolado numa terra estrangeira, que foi levado para Roma e mergulhado em óleo fervente e depois banido para uma ilha distante até que a conta dos seus dias se fechou.

É para nós impossível imaginar a santidade destes dois grandes servos de Deus, tão diferente a sua história, a sua vida e a sua morte, convergindo contudo no seu abandono do mundo, na sua serenidade, na sua liberdade em face do pecado. Nenhuma culpa mortal jamais os tocou; e podemos crer que mesmo isentos foram do pecado venial e voluntário; é impossível, mesmo, que nenhuma ocasião mais propícia ou momento de maior tentação tenha achado neles resposta do pecado. A rebeldia da razão, o capricho dos sentimentos, a desordem da inteligência, a febre da paixão, a traição dos sentidos, tudo lhes era sujeito pela onipotente graça de Deus. Viveram num mundo à sua imagem, uniforme, sereno, aceito, entre visões de paz inefável e perfeita, em comunhão com os Céus, numa antecipação da Glória; e se falavam ao mundo pregadores ou confessores, a sua voz vinha como que de um Santuário, não se misturando com ele mesmo quando a ele se dirigiam, como “uma voz que clama no deserto” ou “no Espírito do Dia do Senhor”. E, assim, nós falamos neles mais como modelos de santidade do que de amor, porque o amor diz respeito a um só objeto externo, para o qual conflui e se esforça; e no entanto, porque eles eram tão íntimos do objeto amado, foi-lhes dado recebe-lo nos seus corações não precisavam de amar o céu, porque já eram o céu, não lhes era mister ver a luz, porque luz eram eles, e viveram entre os homens como aqueles anjos de outrora que vieram ter com os patriarcas e lhes falaram como se fossem eles o próprio Deus, porque Deus estava neles, e por eles falava. Assim estes dois servos do Senhor estavam tão absortos da divindade que mereceram viver a vida angélica, tanto quanto possível ao homem viver, sereníssimos e cheios de doçura, tão acima da tristeza e do medo, da desilusão e do pesar, do desejo e da aversão, até se tornarem na imagem mais perfeita que a terra já contemplou da paz e da serena imutabilidade de Deus. Assim são os muitos Santos que sempre guardaram a sua virgindade e que a história registra para a nossa veneração, como S. José, o grande Sto. Antônio, Sta. Cecília, que foi visitada pelos Anjos, S. Nicolau de Bari, S. Pedro Celestino, Sta. Rosa de Viterbo, Sta. Catarina de Sena e uma multidão de muitos outros, e acima de todos a Virgem das Virgens, a Rainha das Virgens, a Bem-Aventurada Maria que, tão cheia e transbordante da graça do amor, contudo, porque ela é “o trono da sabedoria e a “arca da aliança”, é sobretudo representada sob o sinal do lírio mais ainda que da rosa…

II — O AMOR PENITENTE: PEDRO E PAULO

Mas agora, meus irmãos, voltemo-nos para a outra categoria dos Santos. Tenho falado daqueles, que, de um modo admirável e algumas vezes miraculoso, foram defendidos do pecado e conduzidos de degrau em degrau, graça após graça, desde a juventude até a morte; mas agora suponhamos que Deus quis derramar a luz e o poder do Seu Espírito sobre aqueles que mal empregaram o seu auxílio, e que em si deixaram secar a graça que lhes fora dada, ficando por isso à mercê de uma multidão de demônios de que tiveram que libertar-se, que vivem sob o jugo de hábitos obstinados, de paixões complacentes e de falsas opiniões: que serviram Satanás, não como crianças antes do batismo, mas segundo o seu querer e a sua razão, com as suas faculdades inteiramente responsáveis, de corações lúcidos e vivos. Reconduziria o Senhor estas almas a si, independentemente delas ou mediante o seu querer? Transformá-los-á com o Seu Verbo que os formou, e os fará morrer, e os ressuscitará, e entrará nas suas almas, e se dirigirá a elas para as persuadir e para as ganhar? Sem dúvida que poderia compeli-las, constrange-las, uma vez que é o Senhor absoluto. Poderia por uma santa violência forçar a Sua entrada e neles modelar depois a estatura da Santidade; poderia substituir qualquer processo de conversão e fazer nascer das pedras filhos de Abraão. Mas o Senhor quis que as coisas fossem de outro modo; senão por que se teria Ele próprio manifestado sobre a terra? Por que se cercou, quando da sua vinda, de tantos sinais sensíveis, persuasivos e irrecusáveis? Por que mandou os Seus Anjos anunciar que Ele seria encontrado como um menino numa manjedoura, ao peito de uma Virgem, em Belém? Por que andou espalhando o bem por toda a parte por onde passava? Por que morreu em público, à face do mundo, com sua Mãe junto de Si, e o discípulo amado? Por que nos diz agora que é glorificado nos céus com uma multidão de santos que são os nossos intercessores junto do Seu trono? Por que veio até nós mediante a maternidade de uma Virgem a mais perfeita imagem depois de Si, de tudo o que tem o sabor da beleza, da ternura, da delicadeza e da serenidade no mundo dos homens? Por que se manifesta, por uma muito misteriosa e inefável condescendência, sobre os nossos Altares fazendo-se pequenino e humilde. Ele que é o Senhor dos Céus e da Terra? O que quer tudo isto dizer senão que, quando as almas andam longe e dispersas, Ele as chama por meio de elas próprias, “por cordas humanas”, segundo a nossa natureza, como diz o profeta, conquistando-nos de fato segundo o Seu desejo, salvando-nos a despeito de nós próprios e contudo mediante a nossa cooperação, para que as razões e os afetos do velho Adão que haviam sido “as armas da justiça para Deus”?

Sim, meus irmãos, sem dúvida Ele nos puxa a Si “por cordas humanas”, e o que são estas cordas senão, como diz o profeta no mesmo versículo, “os enleios” ou “os fios do amor”? É a manifestação da glória de Deus na face de Jesus Cristo; é a visão dos atributos e das glórias e das perfeições do Senhor onipotente; é o esplendor da Sua santidade, a doçura da Sua misericórdia, a claridade do Seu Reino, a majestade da Sua lei, a harmonia da Sua Providência, a música mágica da Sua voz, d’Ele que é antagônico da carne e o campeão da alma contra o demônio e o mundo. Tu me seduziste, Senhor, diz o profeta, e eu fui seduzido; Tu és mais forte do que eu, e a Tua força prevaleceu; “lançaste a tua rede com perícia e os seus fios sutis estão enredados em torno de cada afeto do coração, e as suas malhas manifestaram o poder de Deus, fazendo cativa a inteligência para o serviço de Cristo”. Se o mundo tem os seus fascínios, mais os tem o Altar de Deus vivo, se as pompas e as vaidades do mundo encadeiam os olhos, bem maior espanto há de trazer a visão dos Anjos subindo e descendo pela escada erguida entre o céu e a terra; se a vista do mundo embriaga, e os seus encantos enfeitiçam a alma, eis que Maria intercede por nós, e com os seus olhos castos oferece o Filho Eterno à nossa humana ternura, enquanto os cânticos dos querubins se elevam em todas as direções exaltando a graça que n’Ele acham. Será que a esperança de Deus é sem emoção, será que a caridade de Deus é insensível e sem êxtase? “Como são amáveis os teus tabernáculos, Senhor dos Exércitos”, diz o profeta; “a minha alma se regozija e desvanece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se alegram no Deus vivo. Um só dia nos teus átrios melhor é que mil; prefiro ser objeto na casa do meu Deus do que morar nas tendas dos pecadores”. Assim é, como disse o grande penitente e doutor da Igreja, Sto. Agostinho: “Não basta ser conduzido pela vontade, mas também levado pelo sentido da Alegria. O que é que significa ser conduzido assim pelo prazer? Alegra-te na presença do Senhor, Ele te dará o que o teu coração lhe pedir”. Há um certo prazer do coração para o qual doce é o pão dos céus. Além disso, se o poeta disse: “Todos somos levados pelo nosso prazer”, não por necessidade, mas por prazer, não por dever, mas por deleite; quão mais ousado seria dizer que o homem é levado a Cristo, quando a verdade o delicia, e se alegra na perfeição, e se deleita com a justiça e se regozija com a vida eterna, sendo que tudo isso é Cristo? Será que os sentidos são suscetíveis de prazer e a inteligência não? Se assim é, donde vem dizer-se: “Os filhos do homem viverão na esperança ao abrigo das Suas asas; eles se embriagarão com a riqueza da Tua casa, e das fontes da Tua alegria lhes matarás a sede; porque em Ti está a felicidade da vida, e na tua luz veremos a luz”? “Aquele que o Pai chamou, venha até mim”. E a quem chamou o Pai? Aquele que disse: “Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo”. “Estende-se à ovelha um ramo verde e ela vem. O menino apressa-se à vista da fruta que lhe oferecemos; é chamado aquele que come, aquele que corre ao chamamento do amor vem sem que o seu corpo se doa, trazido pelo impulso do seu coração”. Se então é verdade que a contemplação das delícias do mundo atraem aquele que ama, será que Cristo nos não seduz a nós quando revelado pelo Pai? Que mais do que a verdade atrai o espírito do homem? A alma anseia por descansar à sombra da sua paz.

Estes são os meios de que Deus se serve para fazer um Santo de um pecador. Toma-o tal qual é, usa-o contra si próprio. Canaliza as suas afeições e purifica o amor carnal inspirando-lhe a caridade sobrenatural. Não como se se tratasse de uma simples criatura irracional, compelido por instintos e condicionada por estímulos externos, sem vontade própria, e para quem um prazer é igual a qualquer outro, da mesma espécie, só que de intensidade diferente. Já afirmei que faz parte do glorioso plano da Sua graça que ele venha ao coração do homem e o persuada e nele prevaleça, ao mesmo tempo que nele opera um nascimento de novo. Não despreza em nada a natureza original a que o ordenou; trata-o como homem e deixa-lhe o poder de agir de uma ou de outra maneira. Apela para todos os seus poderes e faculdades, para a sua razão, para a sua prudência, para a sua consciência moral. Acorda o seu temor e desperta a sua ânsia de amar. Esclarece-o sobre a perversidade do pecado, ao mesmo tempo que sobre a misericórdia de Deus; mas ainda e em resumo, o princípio animador da nova vida, que o ilumina e o sustém, é o fogo da caridade. Só a ela é suficientemente forte para destruir o homem velho, para dissolver a tirania dos hábitos, para consumir a malícia da concupiscência e para queimar as sólidas raízes do orgulho.

E desta maneira o amor surge-nos como a graça que distingue aqueles que eram pecadores antes de serem Santos; não que o amor não seja a vida de todos os Santos, daqueles que nunca precisaram de converter-se, como a Santíssima Virgem, S. João Batista ou o Apóstolo S. João, e de todos aqueles, muitos, que são as primícias de Deus e do Cordeiro; porém, enquanto que naqueles que nunca pecaram esse amor é contemplativo ao ponto de se identificar com a Santidade do próprio Deus, naqueles em quem Ele se estabelece como princípio da convalescença e de recuperação, vem com tal força e potencial de devoção de entrega, de disponibilidade, de cuidado e de zelo, de atividade e de boas obras, que chega para conferir um caráter visível às suas vidas, e permanece aos nossos olhos associado à idéia que deles fazemos.

Era assim o Grande Apóstolo, sobre que a Igreja está construída, e que eu coloquei no princípio em contraste com o seu companheiro S. João; se o contemplarmos depois da sua primeira chamada, ou durante o seu arrependimento, ele, que entre todos os Apóstolos foi que negou o Senhor, veremos que é o que mais se distingue pelo seu Amor por Ele. Foi por este amor de Cristo, que fluía da sua impetuosidade e exuberância para o amor dos irmãos, que ele foi escolhido para ser o principal Pastor do rebanho. “Simão, filho de João, amas-me mais do que os outros?” A prova foi-lhe feita pelo Senhor; e a recompensa foi: “apascenta as minhas ovelhas”. E é maravilhoso que o Apóstolo que Jesus amava tenha sido assim ultrapassado no seu amor a Jesus por um irmão que não era virgem como ele; porque não foi a João que Jesus fez esta pergunta nem foi ele quem assim respondeu, mas Pedro.

Reparemos numa passagem anterior da mesma narrativa; aí também os dois Apóstolos aparecem do mesmo modo contrastados nos seus caracteres. Assim, quando estavam no barco e o Senhor lhes falou da praia, e “eles não sabiam que era Jesus”, primeiro, “o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: é o Senhor”; e logo “Simão Pedro cingiu a sua túnica e lançou-se ao mar” para chegar mais depressa ao pé de Jesus. São João contempla e São Pedro age.

Portanto, à vista de Jesus o coração de Pedro ilumina-se e logo se lança após Ele; assim também, uma vez, quando viu o seu Senhor caminhando sobre as águas, o seu primeiro impulso foi, como mais tarde, saltar do barco e precipitar-se ao seu encontro: “Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. E quando caiu no seu grande pecado, foi o próprio olhar de Jesus que o fez vir a si: “E o Senhor voltou-se e olhou para Pedro; e Pedro lembrou-se da Palavra do Senhor, e saindo chorou amargamente”. Por isso, noutra ocasião, quando muitos dos discípulos abandonaram o Senhor, e Jesus perguntou aos doze: “Também quereis ir?” S. Pedro respondeu: “Senhor para quem haveríamos de ir? Só tu tens as palavras da vida eterna e nós acreditamos e sabemos que Tu és o Cristo, o Filho de Deus”.

Assim também era aquele outro Grande Apóstolo, que, de muitas maneiras, costuma ser associado a S. Pedro, o Doutor dos Gentios. Quando do milagre da sua conversão o Senhor lhe apareceu na estrada de Damasco para onde ele se dirigia com a intenção de condenar à morte os cristãos — que nos diz ele? “Se somos loucos, é para Deus que somos; se somos sensatos é para vós; porque o amor de Cristo nos compele. Assim, que se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo”. E ainda: “Estou crucificado com Cristo, já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim; e ainda que na carne, vivo pela fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”. E ainda: “Sou o último dos Apóstolos, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela Sua graça sou o que sou; e ela não foi vã em mim, antes trabalhei mais abundantemente do que eles, não eu, contudo, mas a Graça de Deus comigo”. E ainda, noutra passagem: “Se vivemos, no Senhor vivemos; se morremos é no Senhor que morremos; quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor”. Vemos, meus irmãos, o caráter do Amor de S. Paulo; um amor fervoroso, ávido, enérgico, dinâmico, cheio de grandes obras, “forte como a morte” como diz o Rei Sábio, uma chama que “muitas águas não podiam esconder, nem os regatos afogar”, que permaneceu fiel até ao fim, quando pôde dizer: “Combati o bom combate, cheguei ao fim da corrida, guardei a fé; daqui em diante está-me reservada a coroa da justiça que o Senhor me dará naquele dia, o Justo Juiz”.

III — O AMOR PENITENTE: MARIA MADALENA

E há um terceiro, meus irmãos, há um ilustre terceiro, nas Escrituras, que devemos associar a estes dois Grandes Apóstolos quando falamos dos Santos, da penitência e do Amor. Quem havida de ser senão Madalena, a cheia de amor? Quem é exemplo mais perfeito do que busco mostrar-vos, senão “a mulher que era pecadora” que lavou os pés do Senhor com as suas lágrimas, os enxugou com os seus cabelos e os ungiu de perfumes precioso? E que circunstância para um tal ato de amor? Ela que havia chegado, trazida por um propósito exclusivamente profano, realiza um ato de tão perfeito arrependimento. Era um banquete como tantos outros, dado por um rico fariseu, para homenagear, e, contudo, para experimentar o Senhor. Madalena chegou, linda e jovem, “alegre da sua juventude”, “caminhando nas vias do seu coração e no deleite dos seus olhos”, chegou como um adorno para aquela festa, como era hábito as mulheres fazerem naquele tempo, para ungir com seus perfumes inebriantes e frescos a fronte dos cabelos dos convidados. E o orgulhoso fariseu suportava a sua presença desde que soubesse guardar as distâncias; que viesse, sim, como podemos deixar que qualquer animal da casa entre nos nossos quartos, sem lhe darmos atenção; suportava-a como simples decoração necessária ao banquete, mas como se ela não tivesse uma alma, ou fosse sem préstimo e destinada à perdição. Ele e os seus irmãos, no seu orgulho, seriam talvez capazes de galgar terras e mares para fazer um prosélito, mas quanto a escutar o seu coração, a condoer-se do seu pecado, a consola-lo, isso não entrava já no âmbito dos seus pensamentos. Não, o que lhe interessava realmente eram as necessidades do seu banquete, e por isso a deixou entrar, cumprir a sua tarefa, indiferente ao que era a sua vida, desde que devidamente a cumprisse e a isso se limitasse. Porém, eis que aos olhos de Madalena surge uma súbita e maravilhosa visão! Teria sido uma inspiração do momento ou uma decisão amadurecida? Eis que aquela pobre filha do pecado, ataviada de cores garridas, se aproxima para coroar com um perfume suave a cabeça d’Aquele a quem a festa era dedicada; porém, a sua mão se deteve. Ela olha e reconhece o Ancião dos Dias, o Senhor da Vida e da morte, o seu Juiz; e volta a olhar e vê na Sua face e na Sua expressão uma beleza e uma doçura terrível, serena e grandiosa, incomparável com a dos filhos dos homens que sombreavam o esplendor da sala do banquete. Olha uma vez ainda, tímida e sedenta, e no seu olhar presente, e no seu sorriso, descobre uma bondade feita de amor, de ternura, de compaixão e de misericórdia. Olha para si mesma e sente-se vazia e hedionda, como vazios e hediondos eram agora os seus atrativos; a sua graciosidade e frescura, mesmo a sua beleza louvada de boca em boca pelos seus admiradores, parecem subitamente murchas e ressequidas; o seu hálito, que até então julgara perfumado e cujo sabor era conhecido daqueles sete espíritos que nela haviam morado, tornou-se repugnante! Ali se detivera, ali se sumira, cheia de confusão, e no seu desespero, se não tivesse lançado um olhar ainda para aquele Rosto, expressão absoluta de perdão e de amor. O Senhor olha-a; é o Pastor que olha a ovelha perdida; e a ovelha perdida se rende, e agacha-se e se aconchega aos pés do seu Pastor. Ele nada diz, porém olha-a; e ela aproxima-se mais. E os Anjos se regozijam porque ela se aproxima, cega para tudo o que não seja o seu Senhor, esquecendo o desprezo dos orgulhosos, e o riso maldoso dos convivas. Ela vem saber se será salva, se será recebida ou o que dela será; sabendo só que Ele é a Fonte do bem e da verdade e da misericórdia; e para quem havia de ir senão para Aquele que tem as palavras da vida eterna? “Israel, Israel, a ti mesmo te destruíste; em mim, porém, está a salvação, volta para mim que não te voltarei o meu rosto; porque sou santo e a minha cólera não permanecerá para sempre”. “Eis que para ti vamos, porque tu és o Senhor nosso Deus. Verdadeiramente falsas são as colinas e a multidão das montanhas; verdadeiramente o Senhor nosso Deus é a salvação de Israel”. Extraordinário encontro entre o que era mais vil e o que havia de mais puro! Aquelas mãos lascivas, aqueles lábio poluídos, tocarem, beijarem os pés do Eterno. E Ele não evitou a humilde homenagem. E quando, debruçada sobre eles, umedecendo-os com os seus olhos abundantes de lágrimas, o seu amor simples refrescou, cresceu abundante nela, acendendo uma chama que nunca mais havia de declinar desde aquele momento e para sempre! E que escândalo quando o Senhor manifestou diante de todos os homens o seu perdão e a causa do perdão! “Muitos pecados lhe são perdoados pelo muito que amou, mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco se ama”. Depois disse-lhe: “os teus pecados te são perdoados; a tua fé te salvou, vai em paz”.

Desde aquele momento, meus irmãos, o amor tornou-se para ela, como para Sto. Agostinho e mais tarde para Sto. Inácio (grandes penitentes de sua época) como uma fenda na alma, uma ferida aberta ao amor, que o amor rasga numa doçura quase dolorosa. Ela não podia viver longe da presença d’Aquele em que pusera a sua alegria; e o seu espírito era saudoso d’Ele, quando O não via; e seguia-O em silêncio, humilde e ansiosa quando estava na Sua bendita Presença. Vemo-la noutra ocasião, sentada aos Seus pés, ouvindo as Suas palavras; e Ele testemunhou-lhe que ela havia escolhido a melhor parte que lhe não seria tirada. E, depois da Sua ressurreição, foi ela que, pela sua perseverança, mereceu vê-lO antes ainda dos Apóstolos. Não abandonou o sepulcro, quando Pedro e João se retiraram; mas ali ficou chorando e, quando o Senhor lhe apareceu e ela o olhou sem o reconhecer, perguntou muito triste àquele que ela supunha ser o jardineiro: “se o levaste dizei-me para onde, e eu irei busca-lo”. E quando, por fim, o Senhor se deu a conhecer, ela voltou-se e correu a lançar-se-lhe aos pés, como no princípio; porém, como que para experimentar a obediência do seu amor, Ele a deteve, dizendo: “Não me toques porque ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes que eu subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”. E assim ficou só, suspirando pelo tempo em que voltaria a vê-lO e a ouvir a Sua voz e a alegrar-se no Seu sorriso e ser deixada servi-lO para sempre.

Esta é, pois, a segunda grande classe dos Santos, em contraste com a primeira. O amor é a vida de ambas; porém, enquanto o amor do inocente é calmo e sereno, o amor do penitente é ardente e impetuoso, geralmente comprometido no combate com o mundo ativo nas boas obras. E este é o amor que vós, meus irmãos, deveis possuir segundo a vossa medida, se quiserdes ter uma sólida esperança de salvação. Porque fostes pecadores; quer por um desprezo ativo e voluntário, quer por uma secreta transgressão, quer por indiferença, quer por qualquer mau hábito permitido, quer por terdes posto o vosso coração em qualquer objeto deste mundo, e terdes feito a vossa em vez da vontade de Deus. Penso, posso dize-lo, que precisastes ou precisais de vos reconciliar com Ele. Tivestes ou tendes necessidade de ser levados até junto d’Ele, e lavardes no Seu Sangue os vossos pecados e deles receberdes o perdão. Que significa para vós isso, senão que vos é mister arrepender-vos? E o que é o arrependimento sem o amor? Não digo que haveis de sentir o mesmo amor que os santos possuíram para que sejais perdoados, o amor de S. Pedro ou de Sta. Maria Madalena; mas mesmo assim sem a vossa parte nessa Graça sobrenatural, a vossa condição será bem precária e insegura. As vossas obras de penitência devem proceder de uma chama viva de caridade. Se fordes perseverantes até o fim, sê-lo-eis em virtude de uma contínua oração de amor, de fé e de obediência. Àquele que é o Alfa e o ômega, o princípio e o fim. Se tiverdes uma boa esperança de que Ele vos aceitará no fim dos vossos dias, é ainda e só o amor que apaga o pecado. Meus irmãos, nessa hora terrível talvez não possais obter os últimos sacramentos; a morte pode vir de repente quando estiverdes longe de um sacerdote. Podeis ser abandonados a vós próprios, à vossa própria compunção, ao vosso arrependimento; à vossa decisão de vos emendardes. Podeis ter estado semanas e semanas longe de qualquer auxílio espiritual; podereis ter que ir ao encontro do vosso Deus sem a salvaguarda, o consolo, a mediação de qualquer rito sagrado; e nesse caso, o que vos poderá salvar senão a presença da “caridade divina derramada no coração pelo Espírito Santo que nos foi dado”? Nesse momento, nada que não seja sólido hábito de caridade que nos preservou de pecado mortal, ou um poderoso ato de caridade capaz de o apagar, nos aproveitará de alguma coisa. Nada a não ser a caridade vos pode permitir uma vida feliz e uma morte feliz. Como podeis suportar o sono da noite, como podeis suportar partir para qualquer viagem, como podeis suportar a presença da peste ou o ataque de qualquer indisposição por mais ligeira, ou a doença, se precavidos não estiverdes com o amor, o único capaz de defender-vos no momento da terrível mudança, que sobre vós sobrevirá algum dia, embora como ou quando não saibais.

Ah! Como vos apresentareis diante do trono de Cristo, com os sentimentos imperfeitos e confusos que agora vos contentam, com uma certa fé, uma confiança relativa e temor hesitante dos Juízos de Deus, mas sem a autêntica substância da alegria, sem um comprazimento real na sua vontade, nos seus atributos, nos seus mandamentos, no seu serviço, que os Santos possuíam com tal plenitude; e só eles podem conferir à alma o título seguro dos méritos da Sua Paixão e Morte.

Que diferente é o sentimento com que a alma transbordante de amor, uma vez separada do corpo, corre ao encontro de Cristo! Ela sabe quão tamanha é a dívida de castigo que impende sobre ela, embora há muitos anos se haja reconciliado com o Seu Senhor, e espera o purgatório, sabe que não pode senão espera-lo como a dor contígua à alegria eterna. Mas ver a Sua face mesmo por um momento! Ouvir a Sua voz, ouvi-lO falar, mesmo que venha depois o esperado castigo! Ó Salvador dos homens, venho a Ti, mesmo que logo seja expulso da Tua presença; venho a Ti que és a minha vida e tudo quanto tenho, venho a Ti que és a imagem viva que encheu o tempo da minha vida. A Ti me dei quando pela primeira vez tive que tomar parte no mundo; desde muito cedo Te procurei, desde cedo me ensinaste que o bem fora de Ti não era. Quem tenho eu no céu senão Tu? Quem desejei na terra, quem tive no mundo além de Ti? Quem estará comigo no meio da angústia e da saudade de não ver-Te? Sim, embora desça agora à terra deserta, crestada e sedente, “não temerei qualquer mal porque Tu estás comigo”. Hoje Te vi face a face e isso me basta; vi-Te Senhor e esse olhar para Ti é suficiente para um século de sofrimento na terra inferior. Será meu alimento ter-Te olhado conquanto não Te veja agora, até que volte a ver-Te, para nunca mais me separar de Ti. Ter-Te olhado será o sol límpido e o conforto da minha alma lânguida e cansada; a Tua voz é a música eterna nos meus ouvidos. Nada me pode fazer mal, nada me pode perturbar; sofrerei os anos marcados, até que o meu fim chegue, com coragem e mansidão. Levantarei o meu canto num Confiteor, Senhor a Ti e aos Teus Santos, naquele vale de inquietas sombras; a Deus onipotente é à Bem-Aventurada sempre Virgem Maria, Tua Mãe e minha, concebida sem pecado, e ao Bem-Aventurado Miguel Arcanjo, criado na sua pureza pela Mãe de Deus, e ao Bem-Aventurado João Batista santificado desde o ventre de sua mãe; e depois destes três aos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, penitentes, que eram compassivos para com os pecadores segundo a sua própria experiência do pecado; a todos os santos quer tenham vivido em contemplação ou em árduos trabalhos, durante os dias da sua peregrinação, dirigirei as minhas súplicas, rogando-lhes que “se lembrem de mim e que por mim roguem e de mim façam menção junto do Rei, para que Ele me liberte deste cativeiro”. E por fim, “Deus enxugará cada lágrima dos meus olhos, e não haverá mais morte, nem mais luto, nem choro, nem dor nunca mais, por que as coisas antigas já passaram”.

(REVISTA PERMANÊNCIA, nos. 46-49, Agosto-Novembro de 1972).


Sermao do Pe.Antonio Vieira

Fevereiro 26, 2009

SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA

(Igreja de S. Antônio dos Portugueses, Roma. Ano de 1670.)

Padre Antônio Vieira


Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.

Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.

I

O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente discurso.

Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. — Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça.

Ave Maria.

II

O homem foi pó e há de ser pó, logo é pó, pois tudo o que vive não é o que é, é o que foi e o que há de ser. O exemplo da vara de Arão que se converte em serpente. Deus se definiu a Moisés como aquele que é o que é, porque só ele é o que foi e o que há de ser. Se alguém puder afirmar o mesmo de si próprio também é digno de ser adorado.

Enfim, senhores, não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis es. Todos os embargos que se podiam pôr contra esta sentença universal são os que ouvistes. Porém como ela foi pronunciada definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem e a todos seus descendestes, nem admite interpretação nem pode ter dúvida. Mas como pode ser? Como pode ser que eu que o digo, vós que o ouvis, e todos os que vivemos sejamos já pó: Pulvis es? A razão é esta. O homem, em qualquer estado que esteja, é certo que foi pó, e há de tornar a ser pó. Foi pó, e há de tornar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que é: é o que foi e o que há de ser. Ora vede.

No dia aprazado em que Moisés e os magos do Egito haviam de fazer prova e ostentação de seus poderes diante do rei Faraó, Moisés estava só com Arão de uma parte, e todos os magos da outra. Deu sinal o rei, mandou Moisés a Arão que lançasse a sua vara em terra, e converteu-se subitamente em uma serpente viva e tão temerosa, como aquela de que o mesmo Moisés no deserto se não dava por seguro. Fizeram todos os magos o mesmo: começam a saltar e a ferver serpentes, porém a de Moisés investiu e avançou a todas elas intrépida e senhorilmente, e assim, vivas como estavam, sem matar nem despedaçar, comeu e engoliu a todas. Refere o caso a Escritura, e diz estas palavras: Devoravit virga Aaron virgas eorum: a vara de Arão comeu e engoliu as dos egípcios (Ex 7, 12) — Parece que não havia de dizer: a vara, senão: a serpente. A vara não tinha boca para comer, nem dentes para mastigar, nem garganta para engolir, nem estômago para recolher tanta multidão de serpentes. A serpente, em que a vara se converteu, sim, porque era um dragão vivo, voraz e terrível, capaz de tamanha batalha e de tanta façanha. Pois, por que diz o texto que a vara foi a que fez tudo isto, e não a serpente? Porque cada um é o que foi e o que há de ser. A vara de Moisés, antes de ser serpente, foi vara, e depois de ser serpente, tornou a ser vara; a serpente que foi vara e há de tornar a ser vara não é serpente, é vara: Virga Aaron. É verdade que a serpente naquele tempo estava viva, e andava, e comia, e batalhava, e vencia, e triunfava, mas como tinha sido vara, e havia de tornar a ser vara, não era o que era: era o que fora e o que havia de ser: Virga.

Ah! serpentes astutas do mundo vivas, e tão vivas! Não vos fieis da vossa vida nem da vossa viveza; não sois o que cuidais nem o que sois: sois o que fostes e o que haveis de ser. Por mais que vós vejais agora um dragão coroado e vestido de armas douradas, com a cauda levantada e retorcida açoitando os ventos, o peito inchado, as asas estendidas, o colo encrespado e soberbo, a boca aberta, dentes agudos, língua trifulca, olhos cintilantes, garras e unhas rompentes, por mais que se veja esse dragão já tremular na bandeira dos lacedemônios, já passear nos jardins das hespérides, já guardar os tesouros de Midas, ou seja dragão volante entre os meteoros, ou dragão de estrelas entre as constelações, ou dragão de divindade afetada entre as hierarquias, se foi vara, e há de ser vara, é vara; se foi terra, e há de ser terra, é terra; se foi nada, e há de ser nada, é nada, porque tudo o que vive neste mundo é o que foi e o que há de ser. Só Deus é o que é, mas por isso mesmo. Por isso mesmo. Notai.

Apareceu Deus ao mesmo Moisés nos desertos de Madiã; manda-o que leve a nova da liberdade ao povo cativo, e perguntando Moisés quem havia de dizer que o mandava, pare que lhe dessem crédito, respondeu Deus e definiu-se: Ego sum qui sum: Eu sou o que sou (Ex 3, 14). Dirás que o que é te manda: Qui est misit me ad vos? Qui est? O que é? E que nome, ou que distinção é esta? Também Moisés é o que é, também Faraó é o que é, também o povo, com que há de falar, é o que é. Pois se este nome e esta definição toca a todos e a tudo, como a toma Deus só por sua? E se todos são o que são, e cada um é o que é, por que diz Deus não só como atributo, senão como essência própria da sua divindade: Ego sum qui sum: Eu sou o que sou? Excelentemente S. Jerônimo, respondendo com as palavras do Apocalipse: Qui est, et qui erat, et qui venturus est [2], Sabeis por que diz Deus: Ego sum qui sum? Sabeis por que só Deus é o que é? Porque só Deus é o que foi e o que há de ser. Deus é Deus, e foi Deus, e há de ser Deus; e só quem é o que foi e o que há de ser. é o que é. Qui est, et qui erat, et qui venturus est. Ego sum qui sum. De maneira que quem é o que foi e o que há de ser, é o que é, e este é só Deus. Quem não é o que foi e o que há de ser, não é o que é: é o que foi e o que há de ser: e esses somos nós. Olhemos para trás: que é o que fomos? Pó. Olhemos para diante: que é o que havemos de ser? Pó. Fomos pó e havemos de ser pó? Pois isso é o que somos: Pulvis es.

Eu bem sei que também há deuses da terra, e que esta terra onde estamos foi a pátria comum de todos os deuses, ou próprios, ou estrangeiros. Aqueles deuses eram de diversos metais; estes são de barro, ou cru ou mal cozido, mas deuses. Deuses na grandeza, deuses na majestade, deuses no poder, deuses na adoração, e também deuses no nome: Ego dixi, dii estis. Mas se houver, que pode haver, se houver algum destes deuses que cuide ou diga: Ego sum qui sum, olhe primeiro o que foi e o que há de ser. Se foi Deus, e há de ser Deus, é Deus: eu o creio e o adoro; mas se não foi Deus, nem há de ser Deus, se foi pó, e há de ser pó, faça mais caso da sua sepultura que da sua divindade. Assim lho disse e os desenganou o mesmo Deus que lhes chamou deuses: Ego dixi, dii estis. Vos autem sicut homines moriemini [3]. Quem foi pó e há de ser pó, seja o que quiser e quanto quiser, é pó: Pulvis es.

III

Jó define-se como quem foi pó e há de ser pó: Abraão define-se como quem é pó. O texto sagrado não diz: converter-vos-eis em pó mas tornareis a ser pó. O que chamamos vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó.

Parece-me que tenho provado a minha razão e a conseqüência dela. Se a quereis ver praticada em próprios termos, sou contente. Praticaram este desengano dois homens que sabiam mais de nós que nós: Abraão e Jó, com outro memento como o nosso, dizia a Deus: Memento quaeso, quod sicuit lutum feceris me, et in pulverem deduces me: Lembrai-vos, Senhor, que me fizestes de pó, e que em pó me haveis de tornar (Jó 10, 9). —Abraão, pedindo licença ou atrevimento para falar a Deus: Loquar ad Dominum, cum sim pulvis et cinis: Falar-vos-ei , Senhor, ainda que sou pó e cinza (Gn 18, 27). — Já vedes a diferença dos termos que não pode ser maior, nem também mais natural ao nosso intento. Jó diz que foi pó e há de ser pó; Abraão não diz que foi, nem que há de ser, senão que já é pó: Cum sim pulvis et cinis. Se um destes homens fora morto e outro vivo, falavam muito propriamente, porque todo o vivo pode dizer: Eu fui pó, e hei de ser pó; e um morto, se falar, havia de dizer: Eu já sou pó. Mas Abraão que disse isto, não estava morto, senão vivo, como Jó; e Abraão e Jó não eram de diferente metal, nem de diferente natureza. Pois se ambos eram da mesma natureza, e ambos estavam vivos, como diz um que já é pó, e outro não diz que o é, senão que o foi e que o há de ser? Por isso mesmo. Porque Jó foi pó e há de ser pó, por isso Abraão é pó. Em Jó falou a morte, em Abraão falou a vida, em ambos a natureza. Um descreveu-se pelo passado e pelo futuro, o outro definiu-se pelo presente; um reconheceu o efeito, o outro considerou a causa; um disse o que era, o outro declarou o porquê. Porque Jó e Abraão e qualquer outro homem foi pó, por isso já é pó. Fôstes pó e haveis de ser pó como Jó? Pois já sois pó como Abraão: Cum sim pulvis et cinis.

Tudo temos no nosso texto, se bem se considera, porque as segundas palavras dele não só contêm a declaração, senão também a razão das primeiras. Pulvis es: sois pó. E por que? Porque in pulverem reverteris: porque fostes pó e haveis de tornar a ser pó. Esta é a forca da palavra reverteris, a qual não só significa o pó que havemos de ser, senão também o pó que somos. Por isso não diz: converteris, converter-vos-eis em pó, senão: reverteris, tornareis a ser o pó que fostes. Quando dizemos que os mortos se convertem em pó, falamos impropriamente, porque aquilo não é conversão, é reversão: reverteris. É tornar a ser na morte o pó que somos no nascimento; é tornar a ser na sepultura o pó que somos no campo damasceno. E porque somos pó e havemos de tornar a ser pó: In pulverem reverteris, por isso já somos pó: Pulvis es. — Não é exposição minha, senão formalidade do mesmo texto, com que Deus pronunciou a sentença de morte contra Adão: Donec revertaris in terram de qua sumptus es: quia pulvis es (Gn 3, 19): — Até que tornes a ser a terra de que fostes formado, porque és pó.— De maneira que a razão e o porquê de sermos pó: Quia pulvis es, é porque somos pó, e havemos de tornar a ser pó: Donec revertaris in terram de qua sumptus es.

Só parece que se pode opor ou dizer em contrário, que aquele donec: até que, significa tempo em meio entre o pó que somos e o pó que havemos de ser, e que neste meio tempo não somos pó. Mas a mesma verdade divina que disse: donec, disse também: pulvis es. E a razão desta conseqüência está no revertaris, porque a reversão com que tornamos a ser o pó que fomos começa circularmente, não do último senão do primeiro ponto da vida. Notai. Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo: De utero translatus ad tumulum [4] Mas, ou o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo, como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele tanto mais se chega para ele; e quem quanto mais se aparta mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Por isso, quando Deus intimou a Adão a reversão ou resolução deste círculo: Donec revertaris, das premissas: pó foste, e pó serás, — tirou por conseqüência: pó és: Quia pulvis es. Assim que desde o primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar conosco, que não só somos e havemos de ser pó, senão que já o somos, e por isso mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis es.

IV

Se já somos pó, qual a diferença existente entre vivos e mortos? Os vivos são o pó levantado pelo vento, os mortos são o pó caído. Adão, feito de pó, recebendo o vento do sopro divino torna-se vivo. Nas Escrituras, levantar é viver, cair é morrer. Assim, como distingue Davi, há o pó da morte e o pó da vida.

Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse, perguntar-me-eis e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo: anda, corre, voa, entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis es; o vento é a nossa vida: Quia ventus es vita mea (Jó 7, 7). Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.

Nem cuide alguém que é isto metáfora ou comparação, senão realidade experimentada e certa. Forma Deus de pó aquela primeira estátua, que depois se chamou corpo de Adão. Assim o diz o texto original: Formavit Deus hominem de pulvere terrae (Gn 2, 7). A figura era humana e muito primorosamente delineada, mas a substância ou a matéria não era mais que pó. A cabeça pó, o peito pó, os braços pó, os olhos, a boca, a língua, o coração, tudo pó. Chega-se pois Deus à estátua, e que fez? Inspiravit in faciem ejus: Assoprou-a (Gn 2, 7). E tanto que o vento do assopro deu no pó: Et factus est homo in animam viventem: eis o pó levantado e vivo; já é homem, já se chama Adão. Ah! pó, se aquietaras e pararas aí! Mas pó assoprado, e com vento, como havia de aquietar? Ei-lo abaixo, ei-lo acima, e tanto acima, e tanto abaixo, dando uma tão grande volta, e tantas voltas. Já senhor do universo, já escravo de si mesmo; já só, já acompanhado; já nu, já vestido; já coberto de folhas, já de peles; já tentado, já vencido; já homiziado, já desterrado; já pecador, já penitente, e para maior penitência, pai, chorando os filhos, lavrando a terra, recolhendo espinhos por frutos, suando, trabalhando, lidando, fatigando, com tantos vaivens do gosto e da fortuna, sempre em uma roda viva. Assim andou levantado o pó enquanto durou o vento. O vento durou muito, porque naquele tempo eram mais largas as vidas, mas ao fim parou. E que lhe sucedeu no mesmo ponto a Adão? O que sucede ao pó. Assim como o vento o levantou, e o sustinha, tanto que o vento parou, caiu. Pó levantado, Adão vivo; pó caído, Adão morto: Et mortuus est.

Este foi o primeiro pó, e o primeiro vivo, e o primeiro condenado à morte, e esta é a diferença que há de vivos a mortos, e de pó a pó. Por isso na Escritura o morrer se chama cair, e o viver levantar-se. O morrer cair: Vos autem sicut hominas moriemini, et sicut unus de principibus cadetis [5]. O viver, levantar-se: Adolescens, tibi dico, surge [6]. Se levantados, vivos; se caídos, mortos; mas ou caídos ou levantados, ou mortos, ou vivos, pó: os levantados pó da vida, os mortos pó da morte. Assim o entendeu e notou Davi, e esta é a distinção que fêz quando disse: In pulvere mortis deduxisti me: Levastes-me, Senhor, ao pó da morte. Não bastava dizer: In pulverem deduxisti, assim como: In pulverem reverteris? Se bastava; mas disse com maior energia: In pulverem mortis: ao pó da morte, porque há pó da morte, e pó da vida: os vivos, que andamos em pé, somos o pó da vida: Pulvis es; os mortos, que jazem na sepultura, são o pó da morte: In pulverem reverteris.

V

O memento dos vivos; lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. O vento da vida e o vento da fortuna. A estátua de Nabucodonosor: o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo se converte em pó de terra. Significado do nome de Adão. S. Agostinho e a glória de Roma. Roma, a caveira do mundo, ainda está sujeita a novas destruições. Salomão e o espelho do passado e do futuro.

À vista desta distinção tão verdadeira e deste desengano tão certo, que posso eu dizer ao nosso pó senão o que lhe diz a Igreja: Memento homo. Dois mementos hei de fazer hoje ao pó: um memento ao pó levantado, outro memento ao pó caído; um memento ao pó que somos, outro memento ao pó que havemos de ser; um memento ao pó que me ouve, outro memento ao pó que não pode ouvir. O primeiro será o memento dos vivos, o segundo o dos mortos.

Aos vivos, que direi eu? Digo que se lembre o pó levantado que há de ser pó caído. Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela estátua em um momento se convertesse toda em pó: era imagem de homem; isso bastava. O que me admira e admirou sempre é que se convertesse, como diz o texto, em pó de terra: In favillam aestivae areae (Dn 2, 35). A cabeça da estátua não era de ouro? Pois por que se não converte o ouro em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Por que se não converte a prata em pó de prata? O ventre não era de bronze, e o demais de ferro? Por que se não converte o bronze em pó de bronze e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. Cuida o ilustre desvanecido que é de ouro, e todo esse resplendor, em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o rico inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo há de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze, cuida o valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante, e toda essa fortaleza, e toda essa valentia em caindo há de ser pó, e pó de terra: In favillam aestivae areae.

Senhor pó: Nimium ne crede colori [7]. A pedra que desfez em pó a estátua, é a pedra daquela sepultura. Aquela pedra, é como a pedra do pintor, que mói todas as cores, e todas as desfaz em pó. O negro da sotaina, o branco da cota, o pavonaço do mantelete, o vermelho da púrpura, tudo ali se desfaz em pó. Adão quer dizer ruber, o vermelho, porque o pó do campo damasceno, de que Adão foi formado, era vermelho, e parece que escolheu Deus o pó daquela cor tão prezada, para nela, e com ela, desenganar a todas as cores [8]. Desengane-se a escarlata mais fina, mais alta e mais coroada, e desenganem-se daí abaixo todas as cores, que todas se hão de moer naquela pedra e desfazer em pó, e o que é mais, todas em pó da mesma cor. Na estátua o ouro era amarelo, a prata branca, o bronze verde, o ferro negro, mas tanto que a tocou a pedra, tudo ficou da mesma cor, tudo da cor da terra: In favillam aestivae areae. O pó levantado, como vão, quis fazer distinções de pó a pó, e porque não pôde distinguir a substância, pôs a diferença nas cores. Porém a morte, como vingadora de todos os agravos da natureza, a todas essas cores faz da mesma cor, para que não distinga a vaidade e a fortuna os que fez iguais a razão. Ouvi a S. Agostinho: Respice sepulchra et vide quis dominus, quis servus, quis pauper, quis dives? Discerne, si potes, regem a vincto, fortem a debili, pulchrum a deformi [9]: Abri aquelas sepulturas, diz Agostinho, e vede qual é ali o senhor e qual o servo; qual é ali o pobre e qual o rico? Discerne, si potes: distingui-me ali, se podeis, o valente do fraco, o formoso do feio, o rei coroado de ouro do escravo de Argel carregado de ferros? Distingui-los? Conhecei-los? Não por certo. O grande e o pequeno, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, o senhor e o escravo, o príncipe e o cavador, o alemão e o etíope, todos ali são da mesma cor.

Passa S. Agostinho da sua África à nossa Roma, e pergunta assim: Ubi sunt quos ambiebant civium potentatus? Ubi insuperabiles imperatores? Ubi exercituum duces? Ubi satrapae et tyranni [10]? Onde estão os cônsules romanos? Onde estão aqueles imperadores e capitães famosos, que desde o Capitólio mandavam o mundo? Que se fez dos Césares e dos Pompeus, dos Mários e dos Silas, dos Cipiões e dos Emílios? Os Augustos, os Cláudios, os Tibérios, os Vespasianos, os Titos, os Trajanos, que é deles? Nunc omnia pulvis: tudo pó; Nunc omnia favillae: tudo cinza; Nunc in paucis versibus eorum memoria est.: não resta de todos eles outra memória, mais que os poucos versos das suas sepulturas. Meu Agostinho, também êsses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras, comeu o tempo as pedras; também as pedras morrem: Mors etiam saxis, nominibusque venit [11]. Oh! que memento este para Roma!

Já não digo como até agora: lembra-te homem que és pó levantado e hás de ser pó caído. O que digo é: lembra-te Roma que és pó levantado, e que és pó caído juntamente. Olha Roma daqui para baixo, e ver-te-ás caída e sepultada debaixo de ti; olha Roma de lá para cima, e ver-te-ás levantada e pendente em cima de ti. Roma sobre Roma, e Roma debaixo de Roma. Nas margens do Tibre, a Roma que se vê para cima, vê-se também para baixo; mas aquilo são sombras. Aqui a Roma que se vê em cima, vê-se também embaixo, e não é engano da vista, senão verdade; a cidade sobre as ruínas, o corpo sobre o cadáver, a Roma viva sobre a morta. Que coisa é Roma senão um sepulcro de si mesma? Embaixo as cinzas, em cima a estátua; embaixo os ossos, em cima o vulto. Este vulto, esta majestade, esta grandeza é a imagem, e só a imagem, do que está debaixo da terra. Ordenou a Providência divina que Roma fosse tantas vezes destruída, e depois edificada sobre suas ruínas, para que a cabeça do mundo tivesse uma caveira em que se ver. Um homem pode-se ver na caveira de outro homem; a cabeça do mundo não se podia ver senão na sua própria caveira. Que é Roma levantada? A cabeça do mundo. Que é Roma caída? A caveira do mundo. Que são esses pedaços de Termas e Coliseus senão os ossos rotos e truncados desta grande caveira? E que são essas colunas, essas agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros, desencaixados dela! Oh! que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse bem na sua caveira!

Nabuco, depois de ver a estátua convertida em pó, edificou outra estátua. Louco! Que é o que te disse o profeta? Tu rex es caput: Tu, rei, és a cabeça da estátua (Dn 2, 38). Pois se tu és a cabeça, e estás vivo, olhe a cabeça viva para a cabeça defunta, olhe a cabeça levantada para a cabeça caída, olhe a cabeça para a caveira. Oh! se Roma fizesse o que não soube fazer Nabuco! Oh! se a cabeça do mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira é maior que a cabeça para que tenha menos lugar a vaidade, e maior matéria o desengano. Isto fui, e isto sou? Nisto parou a grandeza daquele imenso todo, de que hoje sou tão pequena parte? Nisto parou. E o pior é, Roma minha, se me dás licença para que to diga, que não há de parar só nisto. Este destroço e estas ruínas que vês tuas, não são as últimas: ainda te espera outra antes do fim do mundo profetizado nas Escrituras. Aquela Babilônia de que fala S. João, quando diz no Apocalipse: Cecidit, cecidit Babylon (Ap 14, 8), é Roma, não pelo que hoje é, senão pelo que há de ser. Assim o entendem S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, Tertuliano, Ecumênio, Cassiodoro, e outros Padres, a quem seguem concordemente intérpretes e teólogos [12]. Roma, a espiritual, é eterna, porque Portae inferi non praevalebunt adversus eam [13]. Mas Roma, a temporal, sujeita está como as outras metrópoles das monarquias, e não só sujeita, mas condenada à catástrofe das coisas mudáveis e aos eclipses do tempo. Nas tuas ruínas vês o que foste, nos teus oráculos lês o que hás de ser, e se queres fazer verdadeiro juízo de ti mesma pelo que foste e pelo que hás de ser, estima o que és.

Nesta mesma roda natural das coisas humanas, descobriu a sabedoria de Salomão dois espelhos recíprocos, que podemos chamar do tempo, em que se vê facilmente o que foi e o que há de ser. Quid est quod fuit? Ipsum quod futurum est. Quid est quod factum est? Ipsum quod faciendum est: Que é o que foi? Aquilo mesmo que há de ser. Que é o que há de ser? Aquilo mesmo que foi (Ecl 1, 9). Ponde estes dois espelhos um defronte do outro, e assim como os raios do ocaso ferem o oriente e os do oriente o ocaso, assim, por reverberação natural e recíproca, achareis que no espelho do passado se vê o que há de ser, e no do futuro o que foi. Se quereis ver o futuro, lede as histórias e olhai para o passado; se quereis ver o passado, lede as profecias e olhai para o futuro. E quem quiser ver o presente, para onde há de olhar? Não o disse Salomão, mas eu o direi. Digo que olhe juntamente para um e para outro espelho. Olhai para o passado e para o futuro, e vereis o presente. A razão ou conseqüência é manifesta. Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro. Quid est quod fuit? Ipsum quod futurum est. Quid est quod est? Ipsum quod fuit et quod futurum est. Roma, o que foste, isso hás de ser; e o que foste, e o que hás de ser, isso és. Vê-te bem nestes dois espelhos do tempo, e conhecer-te-ás. E se a verdade deste desengano tem lugar nas pedras, quanto mais nos homens. No passado foste pó? No futuro hás de ser pó? Logo, no presente és pó: Pulvis es.

VI

O memento dos mortos: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. O pó que foi homem, há de tornar a ser homem. Jó compara-se à fênix e não à águia. O autor não teme a morte, teme a imortalidade, já reconhecida pelos filósofos pagãos. Nem vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. A observação de Sêneca.

Este foi o memento dos vivos; acabo com o memento dos mortos. Aos vivos disse: lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. Aos mortos digo: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. Ninguém morre para estar sempre morto; por isso a morte nas Escrituras se chama sono. Os vivos caem em terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da trombeta final os chamar a juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez. Então dirá cada um com Davi: Ego dormivi, et soporatus sum, et resurrexi [14]. Lembre-se pois o pó caído que há de ser pó levantado.

Este segundo memento é muito mais terrível que o primeiro. Aos vivos disse: Memento homo quia pulvis es, et in pulverem reverteris; aos mortos digo com as palavras trocadas, mas com sentido igualmente verdadeiro: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris: lembra-te pó que és homem, e que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram já sabem que cada um é o que foi e o que há de ser. Tu que jazes nesta sepultura, sabe-o agora. Eu vivo, tu estás morto; eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu sendo homem, porque fui pó, e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem, és homem. Morre a águia, morre a fênix, mas a águia morta não é águia, a fênix morta é fênix. E por que? A águia morta não é águia porque foi águia, mas não há de tornar a ser águia. A fênix morta é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix. Assim és tu que jazes nessa sepultura. Morto sim, desfeito em cinzas sim, mas em cinzas como as da fênix. A fênix desfeita em cinzas é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix. E tu desfeito também em cinzas és homem, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem. Não é a proposição, nem comparação minha, senão da Sabedoria e Verdade eterna. Ouçam os mortos a um morto que melhor que todos os vivos conheceu e pregou a fé da imortalidade. In nidulo meo moriar, et sicut phoenix multiplicabo dies meos: Morrerei no meu ninho, diz Jó, e como fênix multiplicarei os meus dias [15]. Os dias soma-os a vida, diminui-os a morte e multiplica-los a ressurreição. Por isso Jó como vivo, como morto e como imortal se compara à fênix. Bem pudera este grande herói, pois chamou ninho à sua sepultura, comparar-se à rainha das aves, como rei que era.

Mas falando de si e conosco naquela medida em que todos somos iguais, não se comparou à águia, senão à fênix, porque o nascer águia é fortuna de poucos, o renascer fênix é natureza de todos. Todos nascemos pare morrer, e todos morremos para ressuscitar. Para nascer antes de ser, tivemos necessidade de pai e mãe que nos gerasse; pare renascer depois de morrer, como a fênix, o mesmo pó em que se corrompeu e desfez o corpo, é o pai e a mãe de que havemos de tornar a ser gerados. Putredini dixi: pater meus es, mater mea, et soror mea vermibus [16]. Sendo pois igualmente certa esta segunda metamorfose, como a primeira, preguemos também aos mortos, como pregou Ezequiel, para que nos ouçam mortos e vivos (Ez 37, 4). Se dissemos aos vivos: lembra-te homem que és pó, porque foste pó, e hás de tornar a ser pó brademos com a mesma verdade aos mortos que já são pó: lembra-te pó que és homem porque foste homem, e hás de tornar a ser homem: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris.

Senhores meus, não seja isto cerimônia: falemos muito seriamente, que o dia é disso. Ou cremos que somos imortais, ou não. Se o homem acaba com o pó, não tenho que dizer; mas se o pó há de tornar a ser homem, não sei o que vos diga, nem o que me diga. A mim não me.faz medo o pó que hei de ser; faz medo o que há de ser o pó. Eu não temo na morte a morte, temo a imortalidade; eu não temo hoje o dia de cinza, temo hoje o dia de Páscoa, porque sei que hei de ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me espera uma eternidade, ou no céu, ou no inferno. Scio enim quod Redemptor meus vivit, et in novissimo die de terra surrecturus sum [17]. Scio, diz. Notai. Não diz: Creio, senão, Scio, sei. Porque a verdade e certeza da imortalidade do homem não só é fé, senão também ciência. Por ciência e por razão natural a conheceram Platão, Aristóteles e tantos outros filósofos gentios [18]. Mas que importava que o não alcançasse a razão onde está a fé? Que importa a autoridade dos homens onde está o testemunho de Deus? O pó daquela sepultura está clamando: De terra surrecturus sum, et rursum circumdabor pelle mea, et in carne mea videbo Deum meum, quem visurus sum ego ipse, et oculi mei conspecturi sunt, et non alius [19]. Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não outro, é o que há de morrer? Sim; mas reviver e ressuscitar à imortalidade. Mortal até o pó, mas depois do pó, imortal. Credis hoc? Utique, Domine [20]. Pois que efeito faz em nós este conhecimento da morte, e esta fé da imortalidade?

Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida. Se esta vida fora imortal, e nós imortais, que havíamos de fazer, senão o que fazemos? Estai comigo. Se Deus, assim como fez um Adão, fizera dois, e o segundo fora mais sisudo que o nosso, nós havíamos de ser mortais como somos, e os filhos de outro Adão haviam de ser imortais. E estes homens imortais, que haviam de fazer neste mundo? Isto mesmo que nós fazemos. Depois que não coubessem no Paraíso, e se fossem multiplicando, haviam-se de estender pela terra, haviam de conduzir de todas as partes do mundo todo o bom, precioso e deleitoso que Deus para eles tinha criado, haviam de ordenar cidades e palácios, quintas, jardins, fontes, delícias, banquetes, representações, músicas, festas, e tudo aquilo que pudesse formar uma vida alegre e deleitosa. Não é isto o que nós fazemos? E muito mais do que eles haviam de fazer, porque o haviam de fazer com justiça, com razão, com modéstia, com temperança; sem luxo, sem soberba, sem ambição, sem inveja; e com concórdia, com caridade, com humanidade. Mas como se ririam de nós, e como pasmariam de nós aqueles homens imortais! Como se ririam das nossas loucuras, como pasmariam da nossa cegueira, vendo-nos tão ocupados, tão solícitos, tão desvelados pela nossa vidazinha de dois dias, e tão esquecidos, e descuidados da morte, como se fôramos tão imortais como eles! Eles sem dor, nem enfermidade; nós enfermos e gemendo; eles vivendo sempre, nós morrendo; eles não sabendo o nome à sepultura, nós enterrando uns a outros; eles gozando o mundo em paz, e nós fazendo demandas e guerras pelo que não havemos de gozar. Homenzinhos miseráveis — haviam de dizer — homenzinhos miseráveis, loucos, insensatos; não vedes que sois mortais? Não vedes que haveis de acabar amanhã? Não vedes que vos hão de meter debaixo de uma sepultura, e que de tudo quanto andais afanando e adquirindo, não haveis de lograr mais que sete pés de terra? Que doidice, que cegueira é logo a vossa? Não sendo como nós, quereis viver como nós? — Assim é. Morimur ut mortales, vivimus ut immortales: morreremos como mortais que somos, e vivemos como se fôramos imortais [21]. Assim o dizia Sêneca gentio à Roma gentia. Vós a isto dizeis que Sêneca era um estóico. E não é mais ser cristão que ser estóico? Sêneca não conhecia a imortalidade da alma; o mais a que chegou foi a duvidá-la, e contudo entendia isto.

VII

Cuidar da vida imortal. As duas portas da morte. Opinião de Aristóteles . A escada do sonho de Jacó. No momento da morte não se teme a morte, teme-se a vida. Resolução.

Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Cansar-me, afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei de deixar, e do que hei de lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso! Tantas diligências para esta vida, nenhuma diligência para a outra vida? Tanto medo, tanto receio da morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos quando entrastes e saístes pelas portas da morte? A morte tem duas portas: Qui exaltas me de portis mortis [22]. Uma porta de vidro, por onde se sai da vida, outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre. Oh! que transe tão apertado! Oh! que passo tão estreito! Oh! que momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para cima, uma escada que chega até o céu; se olhais para baixo, um precipício que vai parar no inferno, e isto incerto.

Dormindo Jacó sobre uma pedra, viu aquela escada que chegava da terra até o céu, e acordou atônito gritando: Terribilis est locus iste! Oh! que terrível lugar é este (Gn 18, 17)! E por que é terrível, Jacó? Non est hic aliud nisi domus Dei et porta caeli: Porque isto não é outra coisa senão a porta do céu. — Pois a porta do céu, a porta da bem-aventurança é terrível? Sim. Porque é uma porta que se pode abrir e que se pode fechar. É aquela porta, que se abriu para as cinco virgens prudentes, e que se fechou para as cinco néscias: Et clausa est janua (Mt 25, 10). E se esta porta é terrível para quem olha só para cima, quão terrível será para quem olhar para cima e mais para baixo? Se é terrível para quem olha só para o céu, quanto mais terrível será para quem olhar para o céu e para o inferno juntamente? Este é o mistério de toda a escada, em que Jacó não reparou inteiramente, como quem estava dormindo. Bem viu Jacó que pela escada subiam e desciam anjos, mas não reparou que aquela escada tinha mais degraus para descer que para subir: para subir era escada da terra até o céu, para descer era escada do céu até o inferno; para subir era escada por onde subiram anjos a ser bem-aventurados, para descer era escada por onde desceram anjos a ser demônios. Terrível escada para quem não sobe, porque perde o céu e a vista de Deus, e mais terrível para quem desce, porque não só perdeu o céu e a vista de Deus, mas vai arder no inferno eternamente. Esta é a visão mais que terrível que todos havemos de ver; este o lugar mais que terrível por onde todos havemos de passar, e por onde já passaram todos os que ali jazem. Jacó jazia sobre a pedra; ali a pedra jaz sobre Jacó, ou Jacó debaixo da pedra. Já dormiram o seu sono: Dormierunt somnum suum (Sl 75, 6); já viram aquela visão; já subiram ou desceram pela escada. Se estão no céu ou no inferno, Deus o sabe; mas tudo se averiguou naquele momento.

Oh! que momento, torno a dizer, oh! que passo, oh! que transe tão terrível! Oh que temores, oh! que aflição, oh! que angústias! Ali, senhores, não se teme a morte, teme-se a vida. Tudo o que ali dá pena, é tudo o que nesta vida deu gosto, e tudo o que buscamos por nosso gosto, muitas vezes com tantas penas. Oh! que diferentes parecerão então todas as coisas desta vida! Que verdades, que desenganos, que luzes tão claras de tudo o que neste mundo nos cega! Nenhum homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente. Mas já é tarde, já não há tempo: Quia tempus non erit amplius (Apc 10, 6). Cristãos e senhores meus, por misericórdia de Deus ainda estamos em tempo. É certo que todos caminhamos para aquele passo, é infalível que todos havemos de chegar, e todos nos havemos de ver naquele terrível momento, e pode ser que muito cedo. Julgue cada um de nós, se será melhor arrepender-se agora, ou deixar o arrependimento para quando não tenha lugar, nem seja arrependimento. Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos passar esta inspiração, que não sabemos se será a última. Se então havemos de desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora: Dixi: nunc caepi [23]. Comecemos de hoje em diante a viver como quereremos ter vivido na hora da morte. Vive assim como quiseras ter vivido quando morras. Oh! que consolação tão grande será então a nossa, se o fizermos assim! E pelo contrário, que desconsolação tão irremediável e tão desesperada, se nos deixarmos levar da corrente, quando nos acharmos onde ela nos leva! É possível que me condenei por minha culpa e por minha vontade, e conhecendo muito bem o que agora experimento sem nenhum remédio? É possível que por uma cegueira de que me não quis apartar, por um apetite que passou em um momento, hei de arder no inferno enquanto Deus for Deus? Cuidemos nisto, cristãos, cuidemos nisto. Em que cuidamos, e em que não cuidamos? Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia a memória da morte. Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz. E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma. Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco cuidemos na nossa morte e na nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva? Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Memento homo!

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Notas:

[1] Augustinus in sentent. ultima.

[2] Aquele que é, e que era, e que há de vir (Apc 1,4).

[3] Eu disse : Sois deuses… Mas vós, como homens, morrereis ( Sl 81,6s).

[4] Desde o ventre trasladado para a sepultura (Jó 10,19).

[5] Mas vós como homens morrereis, e caireis como um dos príncipes (Sl 81,7).

[6] Moço, eu te mando: levanta-te (Lc 7,14).

[7] Não dês crédito ao demasiado colorido.

[8] Hieronymus hic in quaest. Hebraic. Lyran. Hugo Abul. etc.

[9] Augustinus in sentent. ultima.

[10] Aug. ibid.

[11] Também as pedras e os nomes morrem.

[12] Hier. Aug. Ambr. Tertullian. Ecumen. Cassiod. Bellar. Suar. et plures apud Cornelium ibi.

[13] As portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16,18).

[14] Eu dormi e estive sepultado no sono, e levantei-me (Sl 3,6)

[15] In textu graeco Job 29, 18.

[16] Eu disse à podridão: Tu és meu pai; e aos bichos: Vós sois minha mãe e minha irmã. (Jó 17, 14)

[17] Porque eu sei que o meu Remidor vive, eu no derradeiro dia surgirei da terra (Jó 19,25).

[18] Plat. in Timaeo. Philabo Menon. Et lib. de Rep. Aristotel. I de Anima cap. 4 et lib. 3, cap. 4 et lib. 2 de Gen. anim.

[19] Surgirei da terra, e serei novamente revestido da minha pele, e na minha própria carne verei a meu Deus, a quem eu mesmo hei de ver e meus olhos hão de contemplar, e não outro (Jó 19,25 ss).

[20] Crês isto? Sim, Senhor (Jo 11,26).

[21] Seneca. De Consolat. ad Marciam Ep. 57 et Ep. 117.

[22] Tu que me retiras das portas da morte (Sl 9,15).

[23] Disse: Agora começo (Sl 76,11).